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Tribunal da África Ocidental classifica mutilação genital feminina como tortura e cobra lei de proteção em Serra Leoa

O Tribunal de Justiça da Comunidade Econômica dos Estados da África Ocidental – CEDEAO determinou que o governo de Serra Leoa promulgue e implemente legislação que criminalize a mutilação genital feminina e proteja suas vítimas, reconhecendo a prática como “uma das piores formas de violência contra as mulheres” e equivalente à tortura.
A decisão foi motivada pelo caso de Kadijatu Balaima Allieu, que em 2016 foi forçada por membros da sociedade Bondo a sofrer a mutilação, sendo espancada, amordaçada e deixada em estado grave até ser resgatada pela polícia.
A ação, movida pelo Fórum Contra Práticas Nocivas, a organização We Are Purposeful e Allieu, responsabiliza o Estado pela omissão em criminalizar a prática. O Tribunal determinou ainda o pagamento de US$ 30 mil à Allieu como indenização.
Apesar da aprovação recente da Lei dos Direitos da Criança de 2025 em Serra Leoa, o texto não criminaliza especificamente a mutilação genital feminina.
A aplicação da decisão depende agora do presidente do país, Julius Maada Bio, que também ocupa a presidência da CEDEAO.
Enfrentamento
Especialistas dos Núcleos de Língua Portuguesa do Instituto Brasileiro de Direito de Família – IBDFAM alertam que, embora a decisão represente um avanço histórico, o enfrentamento à prática exige estratégias sensíveis e eficazes.
Para Mónica José Mendes Nancassa, presidente do Núcleo Guiné-Bissau do IBDFAM, a mutilação genital feminina, também conhecida pela sigla MGF, é “uma das mais horrendas violações dos direitos humanos de meninas e mulheres” e, por isso, toda a sociedade deve se mobilizar para pôr fim à prática. Ela sugere, contudo, cautela nas ações de enfrentamento.
“Na esmagadora maioria dos casos, os perpetradores dessas violências são familiares, movidos pela crença de que estão a agir para o bem das meninas. Assim, antes de se avançar para julgamentos públicos e midiáticos, é fundamental enfrentar de forma séria e estratégica essa crença, com argumentos científicos irrefutáveis, a fim de proteger a saúde física e mental das nossas meninas e mulheres”, afirma.
Já o juiz de Direito Esmael da Silva, membro do Núcleo Angola do Instituto, avalia que a CEDEAO desempenha papel crucial na proteção dos direitos humanos ao equiparar a MGF à tortura e determinar sua proibição em Serra Leoa, e defende que a cultura não pode ser usada como justificativa para violar direitos fundamentais das mulheres.
“Embora alguns Estados ainda a considerem parte da tradição, é importante afirmar que a cultura, em sua essência, não mutila: ela dignifica, promove identidade e enriquece a convivência social. Não se pode admitir que a tradição seja usada como escudo para violar direitos fundamentais, especialmente o direito da mulher à integridade física, à saúde e à vida”, argumenta.
O caso de Guiné-Bissau
Apesar da determinação do Tribunal, a experiência de outros países da África Ocidental demonstra que a existência de uma lei que proíba a mutilação genital feminina não garante sua erradicação. Em Guiné-Bissau, por exemplo, a prática é considerada crime desde 2011, mas ainda afeta mais da metade das mulheres e meninas.
De acordo com dados do Fundo das Nações Unidas para a Infância – UNICEF, divulgados em março de 2024, mais de 50% das mulheres e meninas entre 15 e 49 anos já foram submetidas à MGF no país – o que corresponde a mais de 400 mil vítimas. Embora a Lei nº 14 estabeleça punições severas para quem realiza, facilita ou se omite diante do ato, sua aplicação enfrenta entraves que impedem a eliminação da prática.
Para a advogada Mónica José Mendes Nancassa, os principais obstáculos são “fatores socioculturais e religiosos profundamente enraizados, que ainda sustentam a prática da mutilação genital feminina”.
Ela defende que a mudança depende de programas educativos, ações de sensibilização em comunidades e escolas, engajamento coletivo e apoio integral às vítimas.
Por Guilherme Gomes
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